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publicado dia 3 de março de 2017

Crianças que queriam brincar na rua transformaram Amsterdã na capital mundial da bicicleta

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*Por Natalia Quiroga, do site espanhol Yokorubo. Traduzido por Pedro Ribeiro Nogueira, da Plataforma Cidades Educadoras.

Por trás de cada conquista social, há um grande número de pessoas que lutam – e outras tantas que tentam colocar freios. Muitos destes processos, que redundaram em conquistas significativas, no entanto, não partiram da iniciativa de adultos. Há casos em que foram as crianças que acenderam esses pavios.

Tal foi a história da vitória das bicicletas em Amsterdã, por exemplo. Não é desde sempre que a fantástica rede de ruas e avenidas adaptadas para o ciclismo se espalham por toda a cidade, com 63% de sua população optando pelos pedais no lugar do acelerador. Hoje, até os carros sabem: na capital da Holanda, quem manda são as bikes.

Houve um tempo, no entanto, no qual o crescente número de automóveis após a Segunda Guerra Mundial colocou em risco a sobrevivência da bicicleta como meio de transporte, não só em Amsterdã como também nas outras cidades holandesas. O uso da bicicleta caía a um ritmo de 6% ao ano. Diante da demanda crescente de carros, a cidade ia se moldando aos motores e às quatro rodas.

O novo modelo de planejamento urbano não teve poucas consequências. Em 1971, 3.300 pessoas morreram em consequências de acidentes automobilísticos. Cerca de quinhentas crianças foram atropeladas naquele ano.

A sociedade reagiu. No bairro De Pijp, na zona sul de Amsterdã, a excessiva concentração populacional (cerca de cinco vezes mais densa que a média da cidade), o desproporcional espaço ocupado pelos carros e a estreiteza das calçadas tornava impossível o brincar e a vida das infâncias.

As crianças decidiram se mobilizar e começaram a recolher assinaturas, conselhos e opiniões entre especialistas e vizinhos para tratar de diminuir o tráfico e conseguir que seu bairro tivesse uma rua na qual pudessem brincar sem perigo. A situação a qual estavam sujeitos e seus esforços para mudá-la foram retratados em um documentário que, transmitido pela televisão holandesa, comoveu todo o país.

Cartazes pedem o fim do assassinato de crianças por automóveis.
Cartazes pedem o fim do assassinato de crianças por automóveis.

“Meu nome é Ronald Dam e vivo em Govert Flinckstraat, em De Pijp”, se apresenta uma das crianças protagonistas do documentário, enquanto caminha por uma rua entupida de tráfego. “Todos estes carros são insuportáveis, não sobra espaço livre. Milhares de pessoas morrem em acidentes e a poluição do ar está cada vez pior. Tudo está desenhado para os carros. Porque não vamos todos de bicicleta?”, indaga Dam, lendo o manifesto que as crianças prepararam em aula, “O Estado de De Pijp, os carros”.

No documentário, é possível observar como as crianças, acompanhadas nas mobilizações por adultos, recebiam as posturas exaltadas que dividiam os vizinhos de seu bairro e também as vizinhanças holandesas. “Impossível! Nunca será possível fechar uma rua ao trânsito, nem pensar!”, diz um morador enfurecido às crianças. “É claro que não pode ser feito, é uma rua feita para carros. Para carros!”, lhes grita outro.

Por outro lado, haviam os vizinhos que entendiam que o que as crianças propunham era seu direito de brincar livremente, como meninos e meninas. “Há 25 anos nós desfrutamos de uma infância maravilhosa. Não sobrou nada daquilo para estes jovens”, lamenta um homem.

“Pode seguir perguntando”, segue o jovem narrador do documentário, “mas se a cidade não atua, você tem que começar a fazer as coisas por conta própria. Este é um exemplo de como fazer uma campanha e isto é o que devemos fazer para conseguir nossa rua de brincar”. Os adultos apoiaram a mobilização das crianças e começaram a bloquear as ruas. Era possível respirar a tensão no ambiente.

“Este é o começo de uma campanha muito mais ampla”, explica um vizinho. “Nós gostaríamos de manter os carros que não são da vizinhança fora de nosso bairro. Tudo bem que venham ao mercado, mas deveriam estacionar em outro lugar e caminhar por aqui. As crianças não podem brincar com os carros passando sem parar.”

O documentário foi transmitido pela televisão holandesa em 16 de março de 1972. No dia seguinte, a imprensa recebeu comentários de apoio às crianças em diversas partes do país, segundo explica em seu blog o holandês Mark Wagenbuur (o mesmo que fez a gentileza de editar o documentário e colocar legendas em inglês ao subi-lo no YouTube).

crianças protesto holanda
Crianças levam seu manifesto para as autoridades públicas da Holanda.

A campanha para reduzir o tráfego de carros já estava nas ruas. O prestigiado jornalista Vic Langenhoff escreveu um artigo em seu jornal De Tijc chamado “Stop de Kindermoord” (Parem com o assassinato de crianças). Seu filho havia sido morto por atropelamento. Novamente, a sociedade reagiu.

A jovem e influente ativista Maartje van Putten (que anos depois seria membro do Parlamento Europeu) foi uma das pessoas que, cansada de ver como os carros atropelavam crianças, começou junto com diversas outras pessoas uma campanha que teria o mesmo nome do artigo de Langenhoff, e que durante os anos seguintes ajudaria a protagonizar protestos multitudinários de meninos, meninas e adultos pelas ruas de todo o país.

“Estávamos fartos de ver como as crianças eram atropeladas nas ruas”, explicou Van Putten em entrevista à BBC. Ela, com apenas 23 anos, foi eleita presidente da campanha. “Nos mobilizamos por todo o país. Em uma tarde em Amsterdã entramos numa rua e bloqueamos o tráfego, colocamos uma mesa enorme e sentamos para comer, crianças e adultos. Tudo era tremendamente pacífico, só queríamos recuperar as ruas.”

A campanha era composta não apenas por manifestações: ela também contava com o apoio de especialistas que começavam a experimentar outros modelos urbanos. Na cidade de Delft, os engenheiros Jooost Vahl e Hans Moderman iniciavam os primeiros woonerf (zonas de convivência) como um modelo de bairro que democratizava o acesso ao espaço público e criava condições de segurança para pedestres e ciclistas.

Elas foram implantadas em zonas residenciais, centros urbanos de tráfego moderado ou áreas comerciais, e se estruturam como ruas sem semáforos, sem calçadas e com elementos que separavam as faixas de acordo com o tipo de veículo. A velocidade máxima dos automóveis não passava de 30 km/h para permitir que pedestres, ciclistas e motoristas dividissem o mesmo espaço.

As mobilizações continuaram durante toda a década de 70, em um momento em que até a política internacional empurrava o mundo na direção de novos modelos: com a crise do petróleo (a Organização de Países Árabes impôs restrições a muitos países europeus pelo apoio à Israel na guerra de Yom Kipur) os países tinham que buscar alternativas de transporte mais sustentáveis e foram criadas, entre outras medidas, os domingos sem carro. As necessidades sociais começavam a coincidir em todas as esferas.

amsterdam
Protesto de crianças e adultos em De Pijp.

As próximas décadas viram uma proliferação de ciclovias em vias com muito tráfego e em estradas de diversas cidades. A introdução dessas novas vias também foi acompanhada de outras melhoras para os ciclistas, como limites de velocidade cada vez mais estritos assim como mudanças na lei que davam prioridade aos ciclistas nos cruzamentos.

Para muitos especialistas, “a chave para favorecer o uso da bicicleta foi controlar o trânsito de carros em lugar de – ou acompanhado por – criar ciclovias, para criar assim uma paisagem urbana na qual os ciclistas mandam e os motoristas são convidados”, como explica o livro Ciclying Cities.

Sem dúvida, a mescla peculiar das mobilizações sociais (de crianças a adultos ciclistas passando por urbanistas e especialistas) criou as condições para que os políticos se convencessem da sensatez de reduzir os perigos das ruas e favorecer o uso da bicicleta. Hoje todos sabem, até as crianças: a bicicleta não só é um sinal da identidade holandesa, senão sua embaixadora oficial em todo o mundo.

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