Mobilidade, Educação e Território

O território em torno da Cidadania

Uma cidade democrática, justa e solidária deve conter, em sua ordem política, fóruns institucionalizados onde os desentendimentos possam ser explorados sistematicamente. É surpreendente, entretanto, que esses lugares sejam atualmente tão escassos em nossas cidades. Sobretudo em tempos de radicalismo político e religioso, é preciso buscar alternativas com vista à construção de espírito crítico no debate público e coletivo.

Esses fóruns devem ser propostos não somente em lugares tradicionalmente atribuídos ao exercício do debate público (câmaras, comissões, comitês etc.), mas também em diversos outros espaços de nossas cidades: praças, coretos, associações de moradores, mercados locais etc. O território, em seus múltiplos âmbitos, pode constituir-se como formador de práticas, experiências, relações e materialidades, que articulam maneiras possíveis de se entender como parte integrante dele (1).

Por meio da ocupação do território, a cidadania é restituída, fomentando um dos elementos que constituem a vida em sociedade. Por meio da formação atenta ao desenvolvimento da criança e do jovem, consideramos a educação também do cidadão adulto (2).

formacao mobilidade urbana 2

A Educação em torno do Território

Partindo das múltiplas possibilidades de apropriação que o território permite, devemos procurar flexibilizar nossos hábitos e retomar lugares na cidade que, ao longo do tempo, passaram a ser exclusivos de usos que não consideram a escala humana apropriadamente. Lugares para os quais não olhamos como possibilidades podem se tornar espaços que abrigam vontades livres e naturais. Pontes, rotatórias, largos, viadutos, margens de rios, ônibus e canteiros podem parecer hoje inacessíveis, mas há pouco tempo eram destinados prioritariamente aos que acessam a cidade andando a pé (3).

A inserção das escolas na recuperação desses espaços é muito importante. Sendo os equipamentos públicos mais capilarizados do país, elas têm grande potencial de articular, em diferentes escalas, realidades socioculturais muito distintas. Essas realidades podem ser observadas entre bairros de uma cidade, e também entre as escolas de diferentes cidades do país.

Escolas são lugares que abrigam profissionais e alunos que se deslocam todos os dias, necessariamente, a fim de possibilitar seus encontros. Para que haja escola, há prática de território. Há deslocamentos, observações e reflexões que podem ser alimentadas e devem ser consideradas na experiência educativa dos cidadãos, fora e dentro do ambiente escolar.

A partir das experiências obtidas na vivência fora da sala de aula, a educação representa a mudança de padrões de comportamento, pois ocupar o espaço público é aceitar a imersão em um universo com forte potencial de mobilidade e permanentemente confrontar alteridades (4). Além de lidar com crianças, oferece a formação de alunos que, dentro de poucos anos, poderão desempenhar ativamente seu papel no debate público. Essas são qualidades relativamente raras no âmbito das políticas públicas, sendo uma estrutural e outra de curto prazo.

Com vistas ao território, as propostas que visam à educação democrática, justa e solidária têm, assim, fortes implicações no que se refere à forma de ocupação dos espaços. Disso decorre a discussão da mobilidade em torno da educação, isto é, da íntima relação entre a forma como nos movemos nesses espaços e a efetivação das mudanças que estamos buscando atingir.

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A mobilidade em torno da educação

“A mobilidade não pode ser reduzida aos deslocamentos no espaço, nem ao âmbito dos transportes somente. A mobilidade é um fenômeno social total” (5). Essa informação, dissociada do viés industrial que costuma ser empregado quando conversamos corriqueiramente sobre mobilidade (baseada em tempos, fluxos, velocidades etc.), permite estabelecer outro ponto de partida para discutirmos uma relação fundamental: como a mobilidade pode fortalecer a educação, e vice-versa. “Os veículos se multiplicam e as calçadas estão apinhadas de pessoas apressadas (…). Não há lugar para elas [as crianças] nas ruas. Os adultos não dispõem de tempo para se ocuparem com elas, pois são oprimidos por compromissos urgentes” (6), afirma, em 1938, a educadora Maria Montessori. E prossegue: “O remédio não consiste em fazer o adulto aprender algumas coisas ou integrar uma cultura deficiente. Não. É preciso partir de uma base diferente. É necessário que o adulto encontre em si mesmo o erro ignorado que o impede de ver a criança” (7).

Ver, perceber, estar atento à criança e ao jovem. Dentro da sala de aula, não é de qualquer forma que desenvolvemos essas habilidades. O mesmo ocorre no espaço exterior à escola, em que devemos tomar os cuidados para facilitar a adaptação desses jovens ao mundo externo e nos aproximar da escala do ser humano: do nosso tamanho, da nossa capacidade de movimento e na dimensão das relações que podemos desenvolver com outras pessoas e com os lugares. O andar a pé, isto é, a forma de exploração do território por meio da caminhada, torna-se assim a forma mais natural e mais poderosa de se relacionar com o que nos envolve.

Abarca uma experiência educadora, solidária e cidadã. É a prática dos nossos próprios músculos que, em conjunto com nossos desejos, faz com que nos desloquemos e cheguemos onde queremos. Se essa preparação (ver, perceber e observar o jovem) não for efetuada, e se ainda não forem adotadas as atitudes adequadas a tal preparação, é impossível ir adiante.

O Grupo em torno da Mobilidade

A partir da vontade em debater o tema da mobilidade, surge em 2012 o ap? estudos em mobilidade, reunindo estudantes de cursos e universidades distintas. Desde 2014 fora do campus da USP, o grupo se reúne agregando estudantes e profissionais de origens e formações cada vez mais diversas. Buscando estudar o tema dos transportes e das políticas públicas de forma mais abrangente, o grupo tem encontrado na educação uma ferramenta essencial para repensar a relação com mobilidade, dentro e fora do ambiente escolar, utilizando a cidade como território de aprendizagem

Com essa preocupação, o ap? elegeu uma série de elementos ligados à atenção, à moral e à experiência de alteridades no espaço público como centrais para uma educação voltada à cidadania. Esses elementos, encontrados com maior intensidade na caminhada como prática de exploração do território, serviram de insumo para desenvolver um projeto de educação em mobilidade voltado à cidadania.

O primeiro projeto de educação do grupo, denominado “Exploradores da Rua”, teve início em 2015, com a preocupação de gerar junto à escola as primeiras explorações do entorno da escola. Atuando desde a base da concepção da proposta (por ex. iniciativas de mapeamento do entorno do território da  escola,compatibilização dos conteúdos das explorações ao projeto político pedagógico, identificação dos destinos das saídas), pretendemos que a escola se sinta protagonista dessas ações e torne as explorações da rua algo cotidiano e integrante do programa da escola. O ap? atua, portanto, como mediador ativo, no início de um processo que pretende que a escola se torne autônoma para criar e manter contato com as distintas associações, entidades e espaços culturais do entorno. Esperamos que essa ação promova também o contato no outro sentido, em que os distintos integrantes do bairro encontrem na escola um lugar de reunião e extensão dos desejos para o espaço comum.

REFERÊNCIAS

(1) Jaume Martinez. A cidade como currículo: pesquisador espanhol desafia escola a olhar a rua (entrevista). Portal Aprendiz. 2014. Disponível em http://portal.aprendiz.uol.com.br/2014/11/12/cidade-como-curriculo-pesquisador- espanhol-desafia-escola-olhar-rua/

(2) Maria Montessori. A Criança. 1936. Círculo do Livro. São Paulo.

(3) Marcel Hänggi. Von der Unvereinbarkeit des Automobils mit der menschlichen Würde (palestra). 2013.

(4) Vincent Kaufmann. Les paradoxes de la mobilité. Lausanne: Presses polytechniques et universitaires romandes, 2008.

(5) Ibidem. P. 99.

(6) Maria Montessori. Op. cit. P. 7

(7) Maria Montessori. Op. cit. (grifo da autora). P. 23.

(8) Ibidem.