Migrantes e o direito à cidade

Desde que aprendeu a andar, Ulisses caminha ao lado da mãe Andrea pelas ruas de São Paulo. Certa vez, uma motorista buzinou ininterruptamente quando viu o garoto correndo pela calçada e questionou sobre o risco dele avançar para a rua e ser atropelado. Pacientemente, Andrea respondeu que o menino pararia na esquina, algo natural para uma criança que já conhecia a dinâmica da cidade.

O episódio revela que é possível criar novas formas de relação entre as crianças e o espaço urbano, superando o cenário de afastamento das ruas criado nas últimas décadas. “As pessoas compraram o discurso da segurança chegando ao ponto das crianças não mais andarem na rua. Mas se a criança não conhece os elementos mais simples do cotidiano, não vai saber brincar livremente. É preciso que a sociedade permita que as crianças participem dos espaços”, reflete a imigrante chilena.

Aprender na cidade, reconhecendo o território como espaço onde a aprendizagem ocorre; aprender com a cidade, ou seja, a partir de seus signos e dinâmicas próprias; e aprender a cidade, compreendendo o espaço urbano como passível de intervenção e ação política, são princípios que o professor da Universidade de Barcelona, Jaume Trilla Bernet, apresenta como norteadores de uma Cidade Educadora.

O movimento, fundado em Barcelona na década de 90, reúne hoje mais de 400 cidades do mundo que reconhecem, promovem e exercem um papel educador na vida de seus habitantes . Organizados em torno da Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE), os municípios se comprometem a reorganizar suas políticas e ações sob os princípios estabelecidos pela Carta das Cidades Educadoras.

Para a diretora da Cidade Escola Aprendiz, Natacha Costa, promover uma Cidade Educadora demanda um pacto social no qual as cidades se responsabilizam pelos espaços, políticas e atitudes dos cidadãos para garantir o desenvolvimento de todos e todas.

“Uma cidade inclusiva e criativa está diretamente ligada à possibilidade das crianças viverem em condições adequadas para o seu desenvolvimento. Para materializar essa concepção, é preciso desenvolver projetos território por território, bairro a bairro efetivando esse pacto e viabilizando que São Paulo se converta aos poucos em uma Cidade Educadora”, destaca.

Para a arquiteta e urbanista espanhola Irene Quintáns, criadora da Rede Ocara e consultora do projeto Urban 95, da Fundação Bernard Van Leer, não ter contato com a cidade torna o espaço urbano ainda mais inseguro. Além disso, o desenho urbano também impacta na percepção sobre o território. Lugares escuros e com muros altos, por exemplo, despertam a sensação de insegurança, que nem sempre é real. “De fato há estudos que fazem mapas comparativos entre a percepção de medo com a criminalidade do lugar e nem sempre coincidem. Muitas vezes as pessoas acham que o lugar é muito perigoso, mas não acontece nada ali.”

Além da iluminação, outro aspecto importante é o uso misto dos espaços, mesclando residências, escritórios e centros comerciais, garantindo o fluxo de pessoas ao longo do dia e a ocupação dos espaços públicos. Isto porque caminhar pelas ruas e usar praças e parques para atividades lúdicas são formas de valorizar o convívio.

O brincar na cidade

Criadora e coordenadora do Mapa da Infância Brasileira e do NEPSID (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento), que impulsiona e mapeia iniciativas e forma empreendedores na área, a antropóloga e pedagoga Adriana Friedmann observa que, nos últimos 25 anos, inúmeros projetos da sociedade civil organizada têm modificado a vida das crianças na cidade, porém muitas iniciativas terminam prematuramente por falta de apoio e por não serem autossustentáveis. Além dessas ações, a especialista aponta o papel de grupos de vizinhanças na atuação para melhorar o território e oferecer espaços saudáveis para a convivência da cidadania.

“As crianças, é claro, também fazem parte destes grupos. Alguns têm se reunido para revitalizar praças e parques, limpar, pintar, plantar, organizar piqueniques, shows, oficinas. A cidade tem inúmeros atores, muitas vezes ‘invisíveis’ ou que não aparecem, mas que fazem enorme diferença na qualidade de vida das crianças que ali moram.”

Adriana reforça que contemplar o direito ao brincar no território urbano passa pela compreensão de que o desenvolvimento de atividades lúdicas é essencial para humanizar as relações entre crianças, jovens, adultos de todas as idades e tornar a vida comunitária, a convivência e o lazer mais saudável para todos. “É uma possibilidade de resgate e valorização da cultura popular e de integração dos cidadãos de diversas regiões e nacionalidades. As crianças têm absoluta necessidade e direito de viverem suas infâncias de forma plena e digna.”

As políticas públicas devem garantir esse direito, proporcionando atividades como ruas de lazer, feiras multiculturais, entre outras ações, além de valorizar e divulgar as atividades já existentes, mas que são pouco conhecidas ou desconhecidas.

Irene Quintás reforça que essas atividades que promovem o sentimento de pertencimento em relação ao território são ainda mais importantes para as crianças imigrantes e migrantes, uma vez que ainda não têm vínculo emocional positivo com o território e isso precisa ser construído. “Está claro que se elas não usam o território, não vão poder construir esse vínculo”.

Consultor do Marco Legal da Primeira Infância e um dos defensores da inclusão do direito das crianças na Constituição Federal de 1988, o pedagogo e filósofo Vital Didonet enfatiza que a cidade precisa olhar aquilo que recebe das crianças e, ao mesmo  tempo, refletir sobre o que oferece a elas. “É importante que a gente pense a cidade também olhando para esse cidadão e o que ele precisa nesse espaço para exercer a sua cidadania, aprender nele, se relacionar com os outros e crescer como uma pessoa integrada ao espaço urbano desde o início”, analisa.

Para que isso ocorra, Didonet aponta como fundamental que o planejamento urbano e o desenho da cidade, tanto na organização quanto na criação dos espaços, contemplem a presença da criança. “Temos que ter espaços para ver a criança. Ela tem que ser visível e os bebês também, para que a gente perceba que eles estão existindo no meio de nós.”

Irene Quintás ressalta que uma forma de avaliar a qualidade das políticas públicas e intervenções municipais é justamente observar se atendem à infância.  “A criança é o cidadão mais vulnerável na cidade, por não ter autonomia. Sem incluir suas necessidades, não se atende toda a população”, pontua. Uma forma de mensurar essa dimensão é intervir no trajeto que a criança faz entre a sua casa e a escola ou outro equipamento público. “É muito importante pensar nos espaços da cidade que temos acesso no dia a dia, na proximidade das áreas de lazer e na facilidade de se chegar lá. Se você só chega de carro, é um espaço excludente.”

O mesmo argumento é defendido pelo pensador, pedagogo e desenhista italiano Francesco Tonucci, criador da iniciativa “Cidade das Crianças”, que aposta na transformação das cidades a partir do olhar das crianças que nela habitam. Tonucci frisa que a escuta efetiva da criança deve servir para gerar uma mudança de paradigma, uma inversão de prioridades capaz de reverter o planejamento masculino de cidade. “Eu não quero uma cidade infantil, uma cidade pequena. Não quero uma cidade montessoriana. Quero uma cidade para todos. E para estar seguro de que não esquecerei ninguém, escolho o mais novo.”

Escutar as crianças, refazer as cidades

Escutar as crianças e planejar a cidade a partir da ótica delas contribui para desnaturalizar os problemas urbanos. De acordo com Adriana Friedmann, “as crianças têm muito a nos mostrar sobre os territórios onde moram, sobre o que enxergam, o que percebem, o que cheiram e escutam. Elas percebem coisas que os adultos não percebem.” 

O programa São Paulo Carinhosa, implementado na gestão de Fernando Haddad, é um exemplo de política pública para o desenvolvimento integral da primeira infância, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade social. Gestora do programa, Ana Estela Haddad também fala sobre a importância da escuta das crianças, uma experiência que o São Paulo Carinhosa vivenciou no território do Glicério, bairro da região central da cidade.

Ao planejar uma praça com as crianças, além de pensar na trajetória segura até o local e num espaço para brincar, também criaram um espaço de convivência para os pais e uma forma de garantir que os moradores de rua fossem incluídos.

“Uma das meninas verbalizou que eles poderiam ser os monitores da praça. Quando a gente pensa o planejamento urbano sob o olhar, a perspectiva da criança, isso tem múltiplos benefícios. O primeiro é esse novo olhar, que como adulto muitas vezes deixamos de ter, que é inclusivo, amplo e criativo. A segunda questão é que se o planejamento urbano for pensado a partir do ponto de vista de uma criança, é certeza que ele será bom e acolhedor para todos”, explica Ana Estela.

Outra experiência destacada por Ana Estela foi a participação de crianças refugiadas numa viradinha cultural promovida na região. As crianças sírias, chegadas há pouco tempo de regiões em conflito, puderam vivenciar novamente o acolhimento e as interações possibilitadas pelo território.

Trabalhar o acolhimento neste caso também implica olhar para a situação da família e desenvolver ações para garantir o acesso a direitos básicos, como vacinação, cadastro no Sistema Único de Saúde, emissão da carteira de trabalho e o ensino do português.

Esse olhar intersetorial foi um dos grandes avanços implementados pelo programa, que atuou de forma integrada com 14 secretarias do município, entre elas Educação, Saúde, Esporte, Direitos Humanos, Cultura, Meio Ambiente e Assistência Social, o que permitiu que a questão da infância não fosse pensada de forma fragmentada e desconectada.

“A criança não vai estar no espaço da cidade de maneira isolada. Em geral, é preciso pensar na questão do núcleo familiar. Tem que haver essa conexão, pensar a criança e colocá-la numa política maior e integrada, como merecem os cidadãos como um todo”, frisa Ana Estela.

Apenas ações intersetoriais e integradas dão conta de fazer o acolhimento humanizado dessas crianças e promover a transformação da sociedade. “Para isso, você precisa ter políticas públicas acessíveis para a criança e sua família, que muitas vezes está em situação de vulnerabilidade, sem outros direitos sociais”, defende a vereadora Juliana, autora do PL 585/2016.

O texto do PL 585 prevê a criação de um conselho gestor, que trabalharia no sentido de reunir as secretarias e pensar em estratégias de articulação de ações, envolvendo também os conselhos para garantir a participação da sociedade civil no processo.

O migrante e a cidade

Apesar do longo histórico da imigração e migração em São Paulo, só depois de muita mobilização e luta das comunidades vieram os primeiros avanços. Rocio Quispe chegou a São Paulo há mais de vinte anos e nota como a vida de imigrante mudou. Da sua infância, ele lembra, por exemplo, que a recomendação era falar espanhol apenas dentro de casa. “Se alguém escutasse, nos olhava como alienígenas”, recorda. Anos depois, notou o inverso: apenas o português era falado pelos adolescentes imigrantes e o espanhol pouco a pouco era esquecido, assim como a identidade.

“Era comum ver uma mãe que não falava o português e a filha que não sabia o espanhol. Isso começou a mudar depois que vieram vários trabalhos para enaltecer a cultura dos imigrantes. A Kantuta foi criada e os adolescentes perceberam que era importante enaltecer os dois lados. É legal ser brasileira e também boliviana. Digo para minha filha que quero que ela fale pelo menos três idiomas”, conta Rocio.

A praça Kantuta leva o nome de uma flor da região do altiplano que tem as cores da bandeira boliviana. Inaugurada em 2002 no bairro do Pari, em São Paulo, a praça se tornou ponto de encontro para as famílias latinas. Foi na Kantuta que a irmã de Rocio, Verônica Yujra, criou o projeto Sí Yo Puedo com o intuito de ajudar imigrantes no aprendizado do português e na busca por emprego.

Sí Yo Puedo é um coletivo independente voltado para a área de educação popular que começou como uma barraca de atendimento na feira da Kantuta, em 2012. Posteriormente, passou a ministrar aulas de português para falantes do espanhol e cursos preparatórios para o vestibulinho das escolas técnicas e vestibulares das universidades públicas, além de também oferecer cursos profissionalizantes.

Em 2016, o projeto Sí Yo Puedo foi contemplado pelo edital do programa VAI – Valorização de Iniciativas Culturais da prefeitura de São Paulo e produziu o livro “Histórias que se cruzam na Kantuta”, resultado de um projeto de história oral que resgata memórias de imigrantes.

Em 2017, em parceria com o Instituto Federal e a Escola Estadual Frei Paulo Luigi, iniciou o projeto “Cultura brasileira para estudantes hispanofalantes”, com crianças de oito a 13 anos. Os encontros são realizados aos sábados na sede do Instituto no bairro do Pari, com atividades sobre música e literatura brasileira, jogos de palavras, além de visitas a espaços públicos. “Nosso objetivo é fazer com que vejam a cidade de outra maneira, como espaço de oportunidade”, afirma Danielle Yura, jornalista do Instituto Federal de São Paulo e uma das coordenadoras do projeto.

Coordenador do Centro de Direitos Humanos e Cidadania (CDHIC), Paulo Iles também destaca a necessidade de trabalhar a valorização da interculturalidade. Para combater a discriminação contra crianças e adolescentes imigrantes, o CDHIC, em parceria com o Fundo Municipal da Criança e Adolescente, iniciou o projeto Tendas da Cidadania.

Duas vezes ao mês nos finais de semana, alternadamente na Escola Estadual Domingos Faustino Sarmiento e na Feira da Kantuta, são desenvolvidas atividades com crianças imigrantes e paulistanas, com intuito de valorizar a diversidade cultural e prevenir a xenofobia e discriminação.

Trocas como estas dão conta não somente de enaltecer os saberes e direitos migrantes como também o conhecimento das crianças sobre o espaço urbano. “Entregar para as crianças um lápis e papel, uma câmera ou convidá-la a ‘falar’ da cidade que ela vê por meio de uma brincadeira, uma encenação, uma música ou qualquer outra forma de narrativa é uma possibilidade de revelar-nos os olhares sensíveis e criativos que elas têm”, finaliza Adriana Friedmann.