Infâncias e Migração Regional em São Paulo

Antes de tratarmos das especificidades das infâncias em contexto de migração regional, é preciso pontuar que a compreensão da infância como parte integrante da cultura e da sociedade é uma conquista recente da humanidade. Se, na Idade Média, meninos e meninas eram vistos como adultos em menor escala, diferenciando-se apenas pelo tamanho e força, com o advento da educação, elas começam a se deslocar do anonimato e a ganhar um lugar de importância entre as famílias e comunidades.

Migração regional no Brasil

Migração regional no âmbito brasileiro diz respeito aos fluxos sul-americanos de deslocamento de indivíduos. Hoje, os migrantes regionais constituem 15% do total de migrantes registrados no Brasil. O levantamento realizado pelo Sistema Nacional de Cadastro e Registro de Estrangeiros (SINCRE) da Política Federal aponta que Bolívia, Argentina e Uruguai estão entre as 10 nacionalidades mais relevantes do país.

Da noção de ingenuidade, ser incompleto, passando à promessa de futuro ou alguém a ser preparado, é somente no final de século 20 que a criança começa a ser reconhecida como sujeito de direito, participante plena na construção de sua história e do mundo que a cerca. Sob esse novo paradigma, características biopsíquicas da idade, a classe socioeconômica, a cultura, o território, a etnia e o gênero, entre outros elementos, projetam diferentes infâncias pelo globo.

Infâncias paulistanas e migração

Na São Paulo de mais de 12 milhões de habitantes, por exemplo, dividem espaço cerca de 2,3 milhões de pessoas com idade inferior a 14 anos. São crianças e adolescentes que se distribuem por 96 distritos marcados por intensos fluxos migratórios e pela desigualdade no acesso aos serviços e políticas públicas fundamentais para o seu desenvolvimento.

Embora os estudos recentes revelem a presença de cerca de 385 mil migrantes em São Paulo (equivalente a 3% dos habitantes), as bases de dados oficiais não permitem a identificação do número exato de crianças e adolescentes em contexto migratório vivendo na cidade.

Essa expressão, utilizada pelo Unicef para definir os amplos arranjos e relações que se pode estabelecer com o processo migratório, admite que há meninos e meninas que:

  • Permanecem em seu país de origem, mesmo que os pais tenham emigrado para outro país
  • Estão desacompanhadas ou separadas, ou seja, vivem com um adulto que não é nem o pai ou mãe nem um parente próximo. São também crianças que migram com parentes ou tutores e não com os pais.
  • Atravessam fronteiras internacionais e migram com seus pais (ou tutores).
  • Nasceram em destino, isto é, nasceram no país que residem seus pais. Neste caso, podem ter a nacionalidade de seus pais e/ou a nacionalidade do país de destino.
  • Retornadas: nasceram no país de destino de pais migrantes, mas regressaram ao país de origem, sozinhos ou acompanhados, de forma voluntária ou como consequência de um procedimento de deportação ou repatriação.

A ausência de um diagnóstico preciso sobre a condição das crianças em contexto migratório que vivem na capital paulista expõe as fragilidades enfrentadas na hora de elaborar e implementar políticas públicas que possam assegurar os direitos fundamentais dessa população.

Para a pesquisadora do Centro de Pesquisa e Docência em Direitos Humanos do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina (CONICET), Lila  García, soma-se a esse desafio o fato da migração ter sido encarada ao longo da história como um movimento majoritariamente de homens adultos.

Segundo a estudiosa, essa abordagem teria gerado uma “dupla ausência”. De um lado, as políticas migratórias não criaram previsão específica para as crianças, de outro, as políticas locais voltadas para a infância não levaram em conta as condições e necessidades das crianças migrantes.

Nesse contexto, Lila chama atenção para a necessidade de capacitação dos agentes públicos envolvidos com o cotidiano da população migrante na cidade que escolhem para viver. “Os representantes do Estado no dia a dia do migrante, seja o professor, o atendente do serviço social ou dos órgãos responsáveis pela documentação, todos deveriam estar não apenas sensíveis aos direitos dessas populações, sobretudo das crianças, mas atentos ao fato de que migrar é uma opção individual e um direito.”

Cidade: espaço de direitos

Uma política de grande importância e pioneira no país foi a Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig), criada em 2013 no âmbito da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo com o objetivo articular as políticas públicas migratórias no município de forma intersetorial.

Em 2016, a  CPMig se tornou uma política de Estado a partir da Lei nº 16.478  que instituiu a Política Municipal para a População Migrante, que busca reverter o cenário descrito por Lila, estabelecendo diretrizes e prioridades para o atendimento dos direitos fundamentais de migrantes. Dentre elas, a lei prioriza os direitos e o bem-estar da criança e do adolescente imigrantes, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e prevê a capacitação dos conselheiros tutelares para esse trabalho.

O que é convivência familiar

A convivência familiar é considerada um direito fundamental e está garantida pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, Constituição de 1988 (art. 227) e ECA (art. 19). Ela pressupõe que as relações familiares são essenciais para o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes e devem, portanto, ser priorizadas quando houver algum tipo de privação, como pode vir a ocorrer nos contextos migratórios.

Orientado pelo princípio da convivência familiar e comunitária e do acesso universalizado aos serviços públicos, o dispositivo busca “garantir a todas as crianças, adolescentes, jovens e pessoas adultas imigrantes o direito à educação na rede de ensino pública municipal”.

Fruto da mobilização social dos migrantes que vivem em São Paulo, a lei 16.478 também instituiu o Conselho Municipal de Imigrantes, um canal institucionalizado para participação social nos processos de construção e monitoramento de políticas públicas que os afetem. A primeira eleição para o órgão deve ocorrer em 2018.

Embora não seja responsável pela formulação de políticas públicas migratórias, a cidade é o local escolhido pela população migrante para viver e é nela que as relações, dinâmicas e direitos se desenrolam.

De acordo com o relatório “Migrantes Regionais na cidade de São Paulo”, elaborado pelo Instituto de Políticas Públicas para o Mercosul, “estudar as migrações a partir da perspectiva das cidades desloca o interesse das razões da mobilidade das pessoas para se concentrar na determinação das formas em que estas trabalham, vivem e configuram habitats locais.”

Os dados levantados pelo relatório revelam que São Paulo é o principal destino dos migrantes regionais no Brasil. Entre eles, destaca-se a comunidade boliviana, cujo número de migrantes registrados chega a 16,9%, atrás apenas dos portugueses, com 18,6% do total. Somada às demais nacionalidades da América do Sul, os migrantes regionais totalizam 28% da população de outra origem que vive na capital paulista.

São diversos os motivos que levam à mobilidade populacional entre os países da América do Sul. Entre os principais fatores, no entanto, destacam-se aqueles de ordem econômica e política. Além disso, contribui para o quadro o crescente movimento de integração regional e permeabilidade das fronteiras.

Direito à educação e à cidade

Duas perspectivas se mostram essenciais e complementares para a análise e reflexão das circunstâncias que as crianças migrantes regionais vivenciam na cidade de São Paulo: a do direito à educação e a do direito à cidade.

Apesar da educação ser um direito constitucionalmente garantido a todas as
pessoas que residem no Brasil, independentemente da sua nacionalidade, na prática, ainda são muitos os empecilhos enfrentados pelas famílias migrantes no acesso e permanência na escola. Em São Paulo, 4.381 estudantes migrantes estão matriculados na rede pública de educação, o que aponta para a urgência de pensarmos uma educação intercultural.

Além disso, o reconhecimento do território como espaço onde a aprendizagem, a convivência e a cidadania ocorrem é fundamental para transformar a cidade em um local de acolhimento, manifestação e afirmação da identidade cultural destas populações e suas múltiplas infâncias.